11.3.15

Uma manhã, a 11 de Março


Naquele dia, pelo fim da manhã, o telefone tocou no Ministério da Justiça. Era ministro Francisco Salgado Zenha, eu seu Secretário. Atendi a chamada. Era a notícia de que um avião T 6 sobrevoava o RAL 1 na Portela de Sacavém. Algo de grave se estaria a passar. O major Dinis de Almeida montara um dispositivo de tiro sobre a entrada em Lisboa. Avisei o ministro, que estava em Conselho de Ministros. Não sei se já saberiam. Com o passar dos minutos a tensão aumentou. Umas horas depois notícias de que se poderia entrar em conflito generalizado corriam desencontradas. Os locais nevrálgicos, sedes do Governo estavam em perigo. Ante a ameaça de um golpe de mão abriu-se um armário que se situava no corredor, que dava acesso ao gabinete do ministro e ao do chefe de gabinete. Estavam ali duas pistolas e uma metralhadora ligeira FBP. Foi-me atribuída uma, outra ao José António Pombinho, honrado cidadão de Portel, meu Colega então em funções, ex-director da Fazenda que o regime deposto havia demitido por razões políticas, cuja residência no Alentejo ostentava orgulhosa, mesmo anos depois, a bandeira do PCP.
Por ali ficámos à espera do pior. Felizmente não houve nenhum assalto ao Terreiro do Paço. Nesse dia o 25 de Abril rumava ao socialismo autoritário de Estado. Foi a 11 de Março.
A 12 de Novembro desse ano, tendo como missão ser Secretário do Conselho de Ministros, sob a presidência do Almirante Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro, fiquei entre os cercados na Residência Oficial. Foi o cerco à Constituinte. Treze dias depois tudo cairia: Angola passaria para a órbita estratégica da URSS, o seu Governo reconhecido sob a égide do MPLA. Hoje é o que sabemos e nos é dado viver.

8.3.15

As duas metades do mesmo Céu


Recuso-me fazer à Mulher a injúria de a considerar generalizadamente melhor do que o Homem, como outros a injuriam considerando-a sistematicamente pior. Ela é semelhante como pessoa, igual como cidadã.
Que o Estado, tido por democrático, ainda lhe não lhe garanta a igualdade, que na sociedade, dita liberal, sejam as mulheres tratadas diferenciadamente, essa é uma questão. E contra isso urge lutar, uma luta que é também uma luta de homens, antiga já, com resultados a evidenciarem-se, luta que passa também por muitas dessas mulheres contra si próprias, a sua submissão, contra os frutos da educação que receberam e a que transmitem aos seus filhos.
Como ser, dotada de inteligência e sensibilidade, credora de respeito pela sua dignidade, a Mulher não pode, porém, ser colocada na balança romana em que tudo se pesa, nem na craveira em que tudo se mede, pois ela não é um objecto sujeito às leis da comparação.
O veneno da sociedade contemporânea é esse mesmo, ter erigido o abjecto mundo da quantidade, em que tudo é número e aritmética, em que nada se concebe fora do mais e do menos, do multiplicar e do dividir. Por causa disso, as duas faces do Mundo, o feminino e o masculino, entram na regra de cálculo de quem dá mais, regido pela lei da concorrência; e há quem se julgue mais alto e mais pesado só por causa do seu género.
Recuso-me a fazer a mim a injúria de tomar nas mãos um tal ábaco moral, uma tal régua discriminadora.
Hoje é Dia da Mulher. E eu, que sou pouco dado a celebrações, venho aqui precisamente por isso, prestar homenagem não ao género mas à espécie, não ao parcial feminino, sim ao total humano. 
Um dia, talvez não seja utopia, ter-se-à chegado a um mundo em que as diferenças convergirão, em que mães, mulheres, filhas, irmãs, receberão o mesmo respeito, mundo em que, de avós a mães e destas a filhas, de geração em geração, se saberá educar homens que aprendam que o diverso não exclui, educar-se-ão mulheres que não se diminuam antes de outros as diminuírem.
Ao terem terminado os seus atormentados dias, minha Mãe, levou consigo a força de alma de ter lutado, isolada, contra o horror da adversidade, logo o da sua incompatibilidade com o mundo. Imolou-se nisso, no fel da incapacidade de ser feliz. Gerou um único filho para quem não há caminho que não seja pedregoso mas que caminha. Na hora de a pensar, livre de tudo quanto foi circunstância e o desespero da dor, é uma "Grande Mulher" que penso, agora que já se foi.
Tantas como ela - e tantas outras mas com alegria irrompendo da esperança - são caminho para a realização do Homem Integral, em que o sexo é apenas distinção acidental na essência do humano, afinal profundamente humano, as duas metades do mesmo Céu.
Não julgo pelo que sofri nem pelo que fiz sofrer: a vida é sempre mais, infinitamente mais, do que a vida que nos foi dado viver.

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Foto: pintura de Margarida Cepeda.