17.8.13

O ouro e o ferro


Relativamente longe que estava, o écran da televisão fazia-me chegar, sexta-feira, as imagens do noticiário das treze ao fundo do café onde almoçava. Hipnótica a mensagem ia ocupando o espaço do que deveria ser um momento de paz, mesmo quando se come fora de casa, ainda que num pronto a comer. Mas é esta um das suas leis de funcionamento, a invasão. A segunda é a do nivelamento. À mesma hora, na mais apinhada zona urbana ao mais recôndito lar aldeão, deixou de haver diferença. A gritaria de som, a estridência da imagem tornam tudo um inferno de vazio parecendo ser o paraíso do preenchimento.
Indiferentes, os demais circunstantes mastigavam, agravando o ruído com o terem de falar mais alto. Além, uma criança carpia em gritaria o cansaço e a desambientação. A torrente noticiosa sempre em torno do mesmo alargava-se. Os incêndios pareciam  já o mesmo incêndio, o fogo eterno que consome e devasta e já arde sem se ver, a carnificina no Egipto poderia ser a mesma do Líbano. Já ninguém quer saber. A excepção veio quando a legenda «A mulher mais rica de Espanha morreu», noticiando o desaparecimento da criadora da Zara.
«Xii, chefe», interrompeu o empregado o seu errático serviço de mesas. «Era a mulher mais rica...». Ficou assim noticiado, com aquela novidade, o que tentava ser uma informação necrológica. Poder-se-ia ter dado destaque ao facto de ter começado como costureira, trabalhando a partir de casa num negócio humilde, ou sobre o modo como compatibilizou negócio e filantropia. Não. Assim não se atingiriam os humildes como aquele empregado de mesa. Nem o seu patrão. Nem os dois. O ouro seduz, não o ferro de onde pode provir.

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12.8.13

Entre as brumas da memória


Há, de facto, uma funda diferença de mentalidade entre o português e o castelhano. Porque não posso dizer o espanhol, já que aquilo que se chama Espanha é um conglomerado de Nações diversas, pouco havendo em comum entre um galego e um basco, entre os que surgem em Barcelona e os que nascem em Madrid. Do mesmo modo, aliás, o nosso rio Tejo marca um outro País e a Galiza é o mesmo espaço nacional que o Portugal a norte daquele rio.
A diferença a que aludo, essa nota-se no respeito pela memória histórica. Onde seria possível haver aqui, no país dito «dos brandos costumes», um monumento análogo ao dos caídos, com a monumentalidade do que ali existe, em cuja cripta arde um fogo perpétuo em homenagem a Francisco Franco e a José António, Primo de Rivera? Em Espanha, precisamente, onde a guerra civil, entre Julho de 1936 e Abril de 1939, matou cerca de meio milhão de pessoas.
Dizia-me o bibliotecário da Fundação José Cela, em Padrón, que, entre os que ali trabalhavam, um teve um familiar no lado republicano, outro no lado nacionalista, um outro um familiar que foi morto. 
Eis a mentalidade deste País, dilacerado que foi por uma cruel e feroz guerra, mas em que as vinganças do passado parecem sustidas.
Que razão ditará essa diferença? 
Dir-se-á que escrevo isto por causa da polémica em torno da estátua a um cónego.Assim fosse apenas. Escrevo isto pela simples razão de haver em Espanha um jornal chamado ABC, monárquico e conservador, que se publica desde 1903, e que desde 1905 é diário, e em Portugal, um País que está longe de não ser conservador, a direita nunca ter tido capacidade ou coragem para lançar um jornal nacional diário que traduza a sua visão do mundo.O capitalismo, esse, quando quer investir na imprensa, fá-lo, aliás, sintomaticamente, em jornais à esquerda.
É uma diferença esta que se nota logo ao começo da manhã na ida ao quiosque. Mais funda, pois, do que a de uma simples estátua.
Tudo se perde pelos labirintos da História, antes de se expressar na toponímia das ruas, que de 28 de Maio passaram a 25 de Abril, de Dona Amélia a Almirante Reis.
Manuel Buiça, a mão armada que matou o Rei, viu o monumento que lhe foi erguido despedaçado pelo Estado Novo e guardado num armazém. 
Professor primário, a 28 de Janeiro de 1908, quatro dias antes do regicídio, no estado de viúvo, lavrou testamento de que uma das testemunhas foi Aquilino Ribeiro, ele também membro da Carbonária, e no qual consta: «Ambos os meus filhos vivem commigo e com a avó materna nas Escadinhas da Mouraria, 4, 4o andar, esquerdo. Minha família vive em Vinhaes para onde se deve participar a minha morte ou o meu desapparecimento, caso se dêem. Meus filhos ficam pobrissimos; não tenho nada que lhes legar senão o meu nome e o respeito e compaixão pelos que soffrem. Peço que os eduquem nos principios da liberdade, egualdade e fraternidade que eu commungo e por causa dos quaes ficarão, porventura, em breve, orphãos. Lisboa, 28 de janeiro de 1908.»
É disto que falo, precisamente.

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