30.6.12

A Moral e o Legal

Perguntaram-me que jornal queria e tinham vários no avião. E sem vergonha pedi o ABC, sabendo-o de direita. E logo ali o primeiro facto simbólico, porque alguma esquerda prevaleceu-se vergonhosamente de intimidar a população, tentando convencê-la de que só à esquerda está o bom coração e a inteligência. E muitos que quiseram passar por socialmente preocupados e cultos alinharam por aí, ainda que vivendo no quotidiano a placidez burguesa, e ao filistino egoísmo juntaram a vulgaridade do trivial.
Li-o, sem preconceitos, passando adiante da parte em que se destacavam as touradas, porque as considero uma barbaridade e a indústria do que se chama "desporto" porque é ramo de negócio que não me interessa. Notei que tinha umas páginas dedicada à família, porque ainda existe e, neste desagregado mundo de solidão, renasce a nostalgia de que resista. Curioso.
Mas não vim aqui para gabar o jornal nem o meu gesto em lê-lo, sim por causa do artigo de fundo, escrito por Andrés Ollero, da Real Academia de Ciências Morais e Políticas, sobre a cultura política. Sobre as várias facetas do facto, sem peias. É a «fascistóide demonização do político» que surge no espírito dos eleitores pela generalização do opróbio a todos pelas culpas de muitos deles, daí resultando a impunidade dos prevaricadores fruto da indiferença face a todos quantos. É também a denúncia do cinto protector da presunção de inocência feita equivaler a presunção de irresponsabilidade dos que são apanhados em flagrante malfeitoria.
Lê-se como Literatura por pertencer àquele tempo em que, mesmo nos jornais e para os jornais se sabia escrever com classe e estilo. E surge com ironia o sarcasmo, a descrição do desfile dos novos ricos do poder e seu séquito, a alçarem-se a conezias que não sonhavam, a alusão aos prebostes de berço de ouro a estenderem-se pelo  trem de vida anafada a que se habituaram mas sem que lhes saia agora da carteira.
Magnífico texto, do que nele se trata é afinal de uma carta de marear pela linha que demarca a lei da moralidade. Protegidos pelas suas próprias leis, aos políticos tem restado o beneplácito da hipócrita fidalguia de quantos teorizam não poder a Justiça imiscuir-se na gestão da coisa pública, porque se contaminaria, vulgarizando-se ao politizar-se. Aí está o cerne: «os actos cujo juízo não se submetem aos tribunais do Estado caem debaixo da jurisdição do tribunal da opinião pública». A frase, que no artigo se cita, pertence a Jeremy Bentham. Em 1821 ofereceu-se para legislar em favor de Portugal na área do Direito Civil, Penal e Constitucional. Se não tivesse morrido em 1832, valeria a pena que o aceitássemos hoje, para que a Moral voltasse à Lei.

21.6.12

Crónica do relapso e astuto devedor

Sabem o que é a vergonha de ver o Estado fazer pouco da sociedade civil? Sabem o que é o desânimo de ver o Estado, que deveria ser o primeiro a dar o exemplo, a fugir às suas responsabilidades? Sabem o que é o Direito não ser a regra certa, mas a regra afeiçoável ao interesse de quem legisla e seus protegidos? Sabem o que é ver surgirem leis para dar razão a quem não a tinha? 
Basta ler o que consta hoje do Diário da República, sob o nome de Decreto-Lei n.º 127/2012, de 21 de Junho, nomeadamente o artigo 4º onde se dispõe que em relação ao Estado: 1 — Consideram -se pagamentos em atraso as contas a pagar que permaneçam nessa situação mais de 90 dias posteriormente à data de vencimento acordada ou especificada na fatura, contrato, ou documentos equivalentes.».
Isto em relação ao Estado porque no que se refere à canalha vale o Código Civil e já se deve após o vencimento acordado sendo para data certa ou especificada.
Para Suas Excelências que nos endividaram e endividaram o Estado ao limiar da falência há sempre uma forma de empurrar o pagamento com a barriga, fazendo uma lei. Por ela só está em mora noventa dias depois de se estar em mora, através dela quem deve ainda não deve ou é como se não devesse. Pois claro! 
O pior, o sintomático, o esclarecedor é que a turba dos credores, esganados porque não lhes pagam, e têm no relapso Estado o voraz credor fiscal e o impune devedor, essa, diminuída em direitos e esmagada pela pressão fiscal, ainda agradece porque ao menos noventa dias ainda é uma esperança.
Até quando? Até quando?

8.6.12

O argumento ad hominem

Em certa política já nem a ordinarice tem limites.
Dom Januário Torgal Ferreira seguramente poderia ter usado a linguagem melíflua típica de um seminarista para se pronunciar sobre uma afirmação do primeiro-ministro o qual, com pose de duvidosa sinceridade, veio elogiar o povo português por sofrer em silêncio os efeitos da política de agressão salarial através dos impostos. Não o fez porque lhe subiu a revolta à boca.
Claro que "mão amiga" logo fez chegar ao jornal com maior difusão nacional o que diz ser o seu salário mensal. Queriam com isso atiçar a revolta do povo contra o clérigo contestante. A lógica era clara: porque, sendo ele padre, não poderia vencer aquele ordenado, deveria viver sim da caixa de esmolas das igrejas; porque ao ganhar o que ganhava era igual aos políticos que criticava.
Na teoria da argumentação há o chamado argumento ad hominem [contra o homem]. Se não puderes destruir o argumento destrói a credibilidade de quem argumenta. A política vive disto. 
Há só uma diferença: quem abriu a mesa deste jogo foram os da política. Fingiram-se contidos e remediados. Desde o Dr. Passos Coelho na primeira viagem ao estrangeiro a fazer de conta que viajava em turística como um exemplo, até às excepções das excepções aos cortes salariais a favor de uns quantos.
Mas há mais: ao fazerem constar quanto ganha um sacerdote que, afinal, pelo cargo que ocupa, está equiparado a major-general, gerando a noção de que é dinheiro a mais, queriam, eles próprios, incluindo os que ganham escandalosamente muitíssimo mais sem razão, esconder-se à sombra daquele que assim queriam emporcalhar.
A regra é simples: quem vive no chiqueiro lança lodo sobre os demais para que, tudo parecendo uma pocilga, não se note, no fundo, a diferença.

P. S. Escrevo isto com a legitimidade de quem já tomou pública posição quanto à ostentação da Igreja que se reclama de Cristo, quanto ao que se passa no IOR. Mas não é isso que está agora em causa. Ser pobre não dá mais razão. Ser pobre de espírito, isso, sim, faz perdê-la toda. A ver se em relação ao rebanho dos que não abrem a boca se publica a lista dos seus ordenados ou da riqueza que nem sabe de onde veio?

2.6.12

Hoje há palhaços!

Nunca ficou tão claro que o que chamamos «notícias» são alegações tornadas públicas por haver este ou aquele outro interesse em que sejam reveladas.
Lembram-se [ou já esqueceram na voragem do tempo] aquela exaltada história sobre a influência da maçonaria na vida pública portuguesa, com nomes à direita e à esquerda, alguns nomes  apenas diga-se? Lembram-se que a coisa atingiu nas mentes sensíveis dos leitores um paroxismo tal que parecia que os "filhos da viúva" dominavam o mundo e, por decorrência, este cantinho da Europa, em que as chagas de Cristo foram heráldica da primitiva bandeira afonsina? 
E lembram-se que tudo isso vinha a propósito do "super-espião"? 
E lembram-se que bastou certos nomes terem vindo ao de cima como pertencentes à "pedreiragem", para uma certa reportagem de televisão ter vindo mostrar que, como em tudo, havia os maus maçons e os bons maçons quase a roçar a frase do Padre Américo de que não há «maus rapazes» e o tema morreu ao raiar da aurora?
Notaram agora uma nova arremetida por causa de uma rede alegadamente ligada a branqueamento de capitais que moverá milhões e envolverá gregos e troianos? E notaram que bastou um certo semanário acusar a administração de um seu concorrente de também estar envolvida na teia para que este, sob protesto de inocência, recolhesse a quartéis as revelações que vinha fazendo considerando-as - ó salto mortal - prejudiciais às investigações criminais em curso?
Repararam que depois do psicodrama sobre a compra da TVI por uma certa empresa, que abriu telejornais e encheu páginas de periódicos e meteu inclusivamente comissão parlamentar, agora é a interligação dessa empresa com um ministro e o mesmo "super-espião" e com tudo o mais que seja?
E deram conta que os maçons continuam, a empresa prossegue, o ministro subsiste e o "super-espião" resiste, agora em vias de abrir a panela dos "segredos de Estado" que conhecerá?
É este o panorama. Com estes factos ou com centenas de outros. É só ir à Hemeroteca e ler. E ver quantos, cavaleiros andantes da denúncia, da delação, da intriga, aí estão. Como aí estão os factos denunciados, delatados e intrigados.
É o mundo da moral relativa e da ineficácia da razão, o mundo do espectáculo sobre a sordidez.
O problema das notícias, hoje, não é elas serem ou não verdadeiras, é elas serem interesseiras: sabe-se o que convém que seja sabido. Mesmo que não seja assim é, na frase risonha de Alexandre O'Neill, «o mundo em forma de assim».
O palerma do leitor, que antigamente comprava dois jornais para comparar entre o Diário de Notícias e o Diário de Lisboa, entre O Jornal e o Tempo, e tirar do que lia a média da verosimilhança do que poderia ter sucedido, agora pode comprá-los todos que fica na descrença total e com uma só convicção: tudo tem a ver com tudo, a podridão é total. E se "zapar" na TV...zarpa!
A degradação moral de um País não se alcança quando os cidadãos não acreditam nos jornais, sim quando acreditam neles à medida do que querem acreditar. É, por isso mesmo, que surge o negócio de "fazer notícias". Porque as pessoas já não têm convicção em coisa alguma, porque mentira e a verdade tornaram-se desinteressantes ante este mundo de conveniências prováveis.
Por isso os partidos da área do poder mudam de liderança como quem muda de casaca para poderem livrar-se das culpas passadas e tornarem acusadores das culpas presentes dos que estão no governo.
Nos seus tempos juvenis do jornal "Expresso", o hoje comentador obrigatório sobre tudo quanto é possível e através dele passa a ser real, Marcelo Rebelo de Sousa, naquele estilo azougado que sempre o diminui face ao que poderia alcançar ante a sua irrequieta inteligência, criava os chamados "factos políticos". Eis o que tem sucedido, connosco a assistirmos.
No meio disto a verdade passou a nem valer um desmentido quanto mais um processo. No dia seguinte já ninguém quer saber.
Que me lembre não tenho como hábito escrever sobre factos da vida corrente. Nem isto tem a ver com as situações que aqui cito. Sobre essas sei lá como são ou como se tornarão. Sei apenas que no meio do caos mediático em que se tornaram, tudo se transmutou como quando o circo desce à cidade, a lógica do espectáculo o «é entrar meus senhores, é entrar, que hoje há palhaços!». O nosso gozo é vê-los cair do trapézio.