18.3.12

A suprema ousadia

Houve tempos em que Pedro Santana Lopes ser primeiro-ministro me causou uma revolta interior a rondar o insurreccional. Escrevi-o quando muitos ainda contemporizavam com o facto, expectantes do que viria e do que lhes calharia. Hoje ler que se dispõe para Presidente da República deixa-me indiferente. Não por ele, que continua igual ao que é, pelo País e no que se tornou. 
Santana Chefe do Estado, Supremo Magistrado da Nação, Chefe Supremo das Forças Armadas, símbolo da Pátria, no que isto deu, é normal. Normalíssimo mesmo. Até um dia, uma pálida madrugada.

10.3.12

A Resposta do Jeca Tatu

Como diz o cabôco: "Diz qui", há muito tempo, um tal Senadô andô falano num jornal qualquer, qui o rocêro, o caipira, é... um priguiçôso, um indolente, um que só vive incostado... um punhado de coisas, enfim. O grande poeta Catullo da Paixão Cearense colocou, então, na boca de um desses brasileiros, lá do sertão, uma resposta... bem assim: 

Seu dotô, venho dos brêdo, 
Só pra mode arrespondê 
Toda aquela fardunçage 
Qui vancê foi inscrevê! 

Num teje vancê jurgano 
Qui eu sô argum cangussú! 
Num sô não, Seu Conseiêro. 
Sô norte, sô violêro 
e vivo naquelas mata, 
como veve um sanhaçu! 
Vassucê já mi cunhece: 
Eu sô o Jeca Tatu! 

Cum tôda essa má piáge, 
Vassucê, Seu Senadô, 
Nunca, um dia, se alembrô, 
Qui, lá naquelas parage, 
A gente morre de fome 
E de sêde, sin sinhô! 

Vassuncê só abre o bico, 
Pra cantá, como um cancão, 
Quano qué fazê seu ninho, 
Nos gáio duma inleição! 

Vassuncê, qui sabe tudo, 
É capaiz de arrespondê 
Quando é que se ouve, 
Nos mato, 
O canto do zabelê? 

Em qui hora é qui o macuco 
Se põe-se mais a piá? 
E quando é que a jacutinga 
Tá mio de se caçá? 
Quando o uru, entre as foiage, 
Sabe mais asubiá? 

Qualé, de todas as arve, 
A mais derêita, inpinada? 
A qui tem o pau mais duro, 
E a casca mais incorada? 

Hem? 

Vancê nun sabe quá é 
A madêra qui é mais boa, 
Pra se fazê uma canôa! 

Vancê, no meio das tropa, 
Dos cavalo, Seu Dotô, 
Oiano pros animá, 
Sem vê um só se movê, 
Num é capáiz de iscuiê 
Um cavalo iquipadô! 

Eu quiria vê vancê, 
No meio de uma burrada, 
Somente pur um isturro, 
Dizê, em conta ajustada, 
Quantos ano, quantas manha, 
Quantos fio tem um burro! 

Vancê só sabe de lêzes, 
Qui si faiz cum as duas mão! 
Mais, porém, nun sabe as lêzes 
Da Natureza, e qui Deus 
Fêiz pra nóis, cum o coração! 

Vancê nun sabe cantá, 
Mais mió qui um curió, 
Gemeno à bêra da istrada! 
Vancê nun sabe inscrevê, 
Num papé, feito de terra, 
Quano a tinta é o do suó, 
E quano a pena é uma inxada! 

Se vancê nun sabe disso, 
Num pode me arrespondê: 
Óia aqui, Seu Conseiêro: 
Deus nun fêiz as mão do home, 
Somente pra ele inscrevê 

Vassuncê é um Senadô, 
É um Conseiêro, é um Dotô, 
É mais do qui um Imperadô, 
É o mais grande cirdadão, 
Mais, porém, eu lhi agaranto, 
Qui nada disso siría, 
Naquelas mata bravia, 
Das terra do meu Sertão. 

A miséria, Seu Dotô, 
Tombém a gente consola. 
O orgúio é qui mata a gente! 
Vancê qué sê persidente? 
Eu sô quero ser... 
Rocêro e tocadô de viola! 

Você tem todo dereito 
De ganhá cem mil pru dia! 
Pra mió podê falá. 
Mais, porém, o qui nun pode 
É a inguinorânça insurtá, 
A gente, Seu Conseiêro, 
Tá cansado de isperá! 

Vancê diz que a gente 
Véve cum a mão no quêxo, 
Assentado, sem fazê causo das coisa 
Qui vancê diz no Senado. 
E vassuncê tem razão! 
Si nóis tudo é anarfabeto, 
Cumo é que a gente vai lê 
Toda aquela falação? 

Priguiçôso? Maracêro? 
Não sinhô, Seu Conseiêro! 

É pruquê vancê nun sabe 
O qui seja um boiadêro 
Criá cum tanto cuidado, 
Cum amô e aligria, 
Umas cabeça de gado... 
E, dipôis, a impidimia 
Carregá tudo, cos diabo, 
In mêno de quato dia!... 

É pruquê vancê nun sabe 
O trabáio disgraçado 
Qui um home tem, Seu Dotô, 
Pra incoivará um roçado... 
E quano o ôro do mío 
Vai ficano inbunecado, 
Pra gente, intoce, coiê, 
O mío morre de sêde, 
Pulo só isturricado, 
Sequinho, como vancê! 

É pruquê vancê nun sabe 
O quanto é duro, um pai sofrê, 
Veno seu fio crescendo, 
Dizeno sempre: 
Papai, vem mi insiná o ABC! 

Si eu subesse, meu sinhô, 
Inscrevê, lê e contá, 
Intonce, sim, eu havéra 
Di sabê como assuntá! 
Tarvêis vancê nun dexasse 
O sertanejo morrendo, 
Mais pió qui um animá! 

Pru módi a puliticaia, 
Vancê qué qui um home saia 
Do Sertão, pra vim... votá?... 
In Juaquim, Pêdo, ou Francisco, 
Quano vem a sê tudo iguá?... 

Priguiçôso? Madracêro? 
Não!.. Não sinhô, Seu Conseiêro! 

Vancê nun sabe di nada! 
Vancê nun sabe a corage 
Qui é perciso um home tê, 
Pra corrê nas vaquejada! 
Vossa Incelênça nun sabe 
O valô di um sertanejo, 
Acerano uma queimada! 

Vamicê tem um casarão! 
Tem um jardim, tem uma cháca. 
Tem um criado de casaca 
E ganha, todos os dia, 
Quer chova, quer faça só, 
Só pra falá... cem mirré! 

Eu trabáio o ano intero, 
Somente quando Deus qué! 
Eu vivo, no meu roçado, 
Mi isfarfando, como um burro, 
Pra sustentá oito fio, 
Minha mãe, minha muié! 

Eu drumo inriba de um côro, 
Numa casa de sapé! 
Vancê tem seu... ortromóvi! 
Eu, pra vim no povoado, 
Ando dez légua, de pé! 

O sór, têve tão ardente, 
Lá pras banda do sertão, 
Qui, in meno de quinze dia, 
Perdi toda a criação! 

Na semana retrasada, 
O vento tanto ventô, 
Qui a paia, qui cobre a choça, 
Foi pus mato... avuô! 

Minha muié tá morrendo, 
Só pru farta de mezinha! 
E pru farta de um dotô! 
Minha fia, qui é bunita, 
Bunita, como uma frô, 
Seu Dotô, nun sabe lê! 

E o Juquinha, qui inda tá 
Cherano mêmo a cuêro, 
E já puntêia uma viola... 
Si entrasse lá, pruma iscola, 
Sabia mais que vancê! 

Priguiçôso? He... Madracêro? 
Não... Não sinhô, Seu Conseiêro!... 

Vancê diga aus cumpanhêro, 
Qui um cabra, o Zé das Cabôca, 
Anda cantano esses verso, 
Qui hoje, lá no Sertão, 
Avôa, de boca em boca: 

(cantado) 

Eu prantei a minha roça, 
O tatu tudo cumeu! 
Prante roça, quem quisé, 
Qui o tatu, hoje, sou eu! 

Vassuncê sabe onde tá o buraco 
Adonde véve o tatu esfomeado? 
Han?... Tá nos paláço da Côrte, 
Dessa porção de ricaço, 
Qui fêiz aquele palaço, 
Cum sangre do disgraçado! 

Vancês tem rio de açude, 
Tem os dotô da Ingêna, 
Qui é pra cuidá da saúde... 
E nóis?... O qui tem? Arresponda! 

No tempo das inleição, 
Qui é o tempo da bandaiêra, 
Nós só tem uma cangaia, 
Qui é pra levá todas porquêra, 
Dos Dotô Puliticáia!... 

Sinhô Dotô Conseiêro, 
De lêzes, eu nun sei nada! 
Meu derêito é minha inxada, 
Meu palaço é de sapé! 
Quem dá lêzes pra famía 
É a minha boa muié! 

Vancê qué ser persidente? 
Apois, seja! 
Apois seja, Meu Patrão! 
A nossa terra, o Brasí, 
Já tem muita inteligênça, 
Muito home de sabença, 
Qui só dá pra... ó, ispertaião! 
Leva o Diabo, a falação! 
Pra sarvá o mundo intêro, 
Abasta tê... coração! 

Prus home di intiligênça, 
Trago comigo essa figa: 
Esses home tem cabeça. 
Mais, porém, o qui é mais grande 
Do que a cabeça... é a barriga! 

Seu Conseiêro... um consêio: 
Dêxe toda a birbotéca dos livro! 
E, se um dia, vancê quisé 
Passá ums dia de fome, 
De fome e, tarvêiz de sêde, 
E drumi lá, numa rêde, 
Numa casa de sapê, 

Vá passá comigo uns tempo, 
Nos mato do meu sertão, 
Que eu hei de lhe abri a porta 
Da choça... e do coração! 

Eu vorto pros matagá... 
Mais, porém, oiça premêro: 
Vancê pode nos xingá, 
Chamá nóis de madraçêro. 
Purquê nóis, Seu Conseiêro, 
Nun qué sê mais bestaião! 
Não!.. Inquanto os home di riba 
Dexá nóis tudo mazombo, 
E só cuidá dos istombo, 
E só tratá di inleição... 

Seu Conseiêro hái de vê, 
Pitano seu cachimbão, 
O Jeca-Tatu se rindo, 
Si rindo... cuspindo 
Sempre cuspindo, 
Co quêxo inriba da mão! 

Eu sei que sô um animá, 
Eu nem sei mêmo o que eu sô. 
Mais, porém, eu lhe agaranto 
Qui o qui vancê já falô, 
E o qui ainda tem de falá, 
O qui ainda tem de inscrevê, 
Todo, todo o seu sabê, 
E toda a sua saranha... 
Não vale uma palavrinha, 
Daquelas coisa bunita, 
Qui Jesuis, numa tardinha, 
Disse, inriba da montanha!..