3.2.11

Miguel Urbano e o Santa Maria

Porque decorriam cinquenta anos sobre o assalto ao paquete "Santa Maria" e isso significou um momento histórico decisivo na História do anterior Regime, marcando o início do seu descrédito na cena internacional - como o mostrou o auxílio americano e brasileiro às negociações que culminaram com a devolução do navio à Armada brasileira e por esta a Portugal, com o concomitante apoucamento da posição de Salazar em todo o caso - organizei, com a colaboração da Livraria Barata, um evento para o qual convidei o Camilo Mortágua que integrarara o DRIL, o comando luso-espanhol que levou a cabo a proeza e em cujo livro de memórias faz referência ao seu envolvimento no feito.
A casa que nos recebeu aproveitou e procedeu à apresentação de um livro que traduzi, o relato do acontecimento escrito por Jorge Sotomaior, um galego que integrou a direcção do DRIL e cuja narrativa conflituava directamente com a de Henrique Galvão, também líder do DRIL.
Pretendi também convidar o Miguel Urbano Rodrigues que esteve a bordo do navio enquanto jornalista, assistindo à parte terminal das negociações. Declinou o convite.
Pensei que mantivesse essa nossa conversa sob reserva, embora não fosse confidencial. Trouxe-a, porém, para o conhecimento público, talvez porque eu anunciei no evento, a seu pedido, a sua recusa. Pode ler-se aqui.
Gostava que ficasse claro que tive pena que o Miguel Urbano recusasse. Não me convenceu o facto de me referir que tanto a versão do Galvão, como a do Sotomaior como a do Camilo não correspondiam à verdade, porque se a verdade era a que ele sabia então mais uma razão para estar no evento pois tínhamos direito a essa "verdade". Disse-lho então mas ele insistiu em recusar presença.
Numa só coisa ficou mágoa: quando ele me disse e repete que o livro do Sotomaior não deveria ter escrito e muito menos traduzido. Discordo com todas as forças da minha alma de homem livre. Todos os livros, todas as versões dos acontecimentos têm o seu lugar. A liberdade quando nasce é para todos, mesmo para os que não dizem a nossa "verdade", mesmo para os que dizem o que se vem a saber não ser "verdade". Só pela pluralidade e pelo contraditório se alcançam as certezas possíveis.
Lamento que o Miguel Urbano pense isto quanto ao livro ter sido escrito e traduzido. Ele lamentará seguramente ter estado envolvido na aventura do "Santa Maria". O problemas das culpas que temos a expiar não se esconjura queimando na fogueira os demónios que nos atormentam.
Respeito-o. Ele deve respeitar o esforço a que meti ombros para dar a conhecer este outro lado dos acontecimentos. Ainda bem que o Sotomaior escreveu o livro, oxalá todos os lados da questão possam dar azo a muitos livros. Que surja um livro escrito pelo lado daqueles que cumpriram o seu dever não alinhando com o comando assaltante, do ângulo do piloto que foi morto a tiro, na perspectiva dos vários passageiros, que nem todos viram o facto como um cruzeiro de luxo com uma aventura revolucionária não prevista no programa, na óptica do problema jurídico-internacional que embaraçou o Estado Português, livros que mostrem as infiltrações da Seguridad espanhola e por via dela da Pide no DRIL, livros sobre a ligação cubana, livros sobre as conexões da CIA, livros que mostrem tudo o que houver para mostrar.
O livro de memórias do Miguel Urbano é fundamental, todos os livros são fundamentais. Viva a «Santa Liberdade», assim foi crismado o navio, consumada a "Operação Dulcineia"!