21.2.11

Acredite o Palácio de Palmela

A degradação de um sistema nasce com os actos e com as palavras. Quando se desempenham cargos de responsabilidade cada palavra conta, porque é um exemplo, porque é uma sinal de autoridade.
Uma «boca» num café proferida por um anónimo de nada vale. O quer que eu diga aqui conta pouco. Porque aquele fala quantas vezes com muitíssimo menos informação do que desejo de auditório, porque eu falo por mim apenas e neste momento nada represento, por melhor informado que estivesse e não estou.
Ouvir o Procurador-Geral da República dizer que o segredo de justiça é «uma fraude» e que «não há nenhum poder para controlar isso», dói. Porque supunha-se que a defesa do segredo de justiça coubesse ao Ministério Público de que ele é o vértice. Porque se acreditava que, a conviver com fraudes, ele tivesse a coragem de se demitir do cargo e do poder criminal geral e voltar para o seu lugar de juiz onde exercia o poder civil específico.
Mas ouvi-lo dizer que em Portugal «os políticos continuam a tentar resolver as questões políticas através de processos judiciais» espanta. Não porque seja ou não mentira, mas pelo que significa de suspeita indeterminada quanto aos juízes que o tolerem e de dúvida quanto a saber de que processos falará ele afinal, sem os nomear.
O poder em Portugal esfrangalhou-se. Aos responsáveis exigia-se rigor, concisão, autoridade. Hoje quantos falam com a generalização de conversa de tasca, com a loquacidade de coldrilheiros, com a incapacidade de amanuenses sujeitos a ocultas obediências. A lepra da verborreia demagógica está a tornar a Justiça numa gafaria. Um a um caem-lhe os membros.
Estamos num País em declínio onde ninguém manda, ninguém quer obedecer.
Ouvir o Procurador-Geral falar assim como o Dr. Alberto João Jardim, com o mesmo tom e sem o mesmo dom, custa e enraivece! A mim e a muitos dos que têm de suportar este discurso de vacuidades e de demissão que a nada conduz, e que é, afinal, a conversa do populismo.
Acredite o Palácio de Palmela que a rendição dos poderosos abre as portas à insurreição dos fracos, assim um caudilho os comande. O primeiro sinal de anemia do mando é sentir-se nele a tentação da vulgaridade.
Não tenho esperança que algo mude mas ao menos que não piore. Para mal já basta assim.

3.2.11

Miguel Urbano e o Santa Maria

Porque decorriam cinquenta anos sobre o assalto ao paquete "Santa Maria" e isso significou um momento histórico decisivo na História do anterior Regime, marcando o início do seu descrédito na cena internacional - como o mostrou o auxílio americano e brasileiro às negociações que culminaram com a devolução do navio à Armada brasileira e por esta a Portugal, com o concomitante apoucamento da posição de Salazar em todo o caso - organizei, com a colaboração da Livraria Barata, um evento para o qual convidei o Camilo Mortágua que integrarara o DRIL, o comando luso-espanhol que levou a cabo a proeza e em cujo livro de memórias faz referência ao seu envolvimento no feito.
A casa que nos recebeu aproveitou e procedeu à apresentação de um livro que traduzi, o relato do acontecimento escrito por Jorge Sotomaior, um galego que integrou a direcção do DRIL e cuja narrativa conflituava directamente com a de Henrique Galvão, também líder do DRIL.
Pretendi também convidar o Miguel Urbano Rodrigues que esteve a bordo do navio enquanto jornalista, assistindo à parte terminal das negociações. Declinou o convite.
Pensei que mantivesse essa nossa conversa sob reserva, embora não fosse confidencial. Trouxe-a, porém, para o conhecimento público, talvez porque eu anunciei no evento, a seu pedido, a sua recusa. Pode ler-se aqui.
Gostava que ficasse claro que tive pena que o Miguel Urbano recusasse. Não me convenceu o facto de me referir que tanto a versão do Galvão, como a do Sotomaior como a do Camilo não correspondiam à verdade, porque se a verdade era a que ele sabia então mais uma razão para estar no evento pois tínhamos direito a essa "verdade". Disse-lho então mas ele insistiu em recusar presença.
Numa só coisa ficou mágoa: quando ele me disse e repete que o livro do Sotomaior não deveria ter escrito e muito menos traduzido. Discordo com todas as forças da minha alma de homem livre. Todos os livros, todas as versões dos acontecimentos têm o seu lugar. A liberdade quando nasce é para todos, mesmo para os que não dizem a nossa "verdade", mesmo para os que dizem o que se vem a saber não ser "verdade". Só pela pluralidade e pelo contraditório se alcançam as certezas possíveis.
Lamento que o Miguel Urbano pense isto quanto ao livro ter sido escrito e traduzido. Ele lamentará seguramente ter estado envolvido na aventura do "Santa Maria". O problemas das culpas que temos a expiar não se esconjura queimando na fogueira os demónios que nos atormentam.
Respeito-o. Ele deve respeitar o esforço a que meti ombros para dar a conhecer este outro lado dos acontecimentos. Ainda bem que o Sotomaior escreveu o livro, oxalá todos os lados da questão possam dar azo a muitos livros. Que surja um livro escrito pelo lado daqueles que cumpriram o seu dever não alinhando com o comando assaltante, do ângulo do piloto que foi morto a tiro, na perspectiva dos vários passageiros, que nem todos viram o facto como um cruzeiro de luxo com uma aventura revolucionária não prevista no programa, na óptica do problema jurídico-internacional que embaraçou o Estado Português, livros que mostrem as infiltrações da Seguridad espanhola e por via dela da Pide no DRIL, livros sobre a ligação cubana, livros sobre as conexões da CIA, livros que mostrem tudo o que houver para mostrar.
O livro de memórias do Miguel Urbano é fundamental, todos os livros são fundamentais. Viva a «Santa Liberdade», assim foi crismado o navio, consumada a "Operação Dulcineia"!