30.5.09

A infâmia pública

Selecção, estigmatização, exemplaridade: eis os três Cavaleiros do Apocalipse do nosso pensamento social contemporâneo. Muitas pessoas pensam o que os jornais pensam, outras só pensam o que se pensa na televisão. Eis os efeitos.
Primeiro, as conversas do dia são sempre vocais e inaugurais, na lógica da abertura de telejornal: retumbantes, é o mundo em tchan!
Depois, os temas são sempre fulanizados: não há mais mundo que o dos suspeitos do costume, eternos símbolos do mal, arquétipos da malignidade, para benefício da simplificação do discurso e para descanso de todos os outros, poupados à ignomínia de existirem.
Finalmente, o raciocínio é sempre inconclusivo: isto vai mal, pior do que quando estava mal, donde está péssimo a ponto de não haver saída, de outro modo não estaria tão mal.
A moral pública é a do pelourinho: os amarrados à infâmia colectiva subrogam-se aos pecados dos que serão os primeiros a atirar a primeira pedra.
A hipocrisia é todos se sentirem juízes do que não conhecem, depois de terem sido acusadores pelo que ouviram dizer e testemunhas do que lhes parece que é.
O ridículo é ninguém notar a triste figura que faz. É por isso que se fala tanto. É por isso que alguns fazem de falar uma profissão milionária. Chamam-se comentadores.

25.5.09

O aforrador nato

Já não ia a Tróia há tanto tempo que Tróia me pareceu uma novidade. O ferry era verde e grande e a cabine do piloto parecia uma ampla sala de jantar. E havia em Tróia edifícios magníficos como em Singapura e nunca estive em Singapura ou no Dubai, digo eu que nunca estive no Dubai.
Ameaçava chuviscar, mas o haver uma marina é um raio de sol a iluminar-nos por dentro em dia de passeio, dando ânsias de alto mar. O que não vi em Tróia foram pessoas, salvo um casal que se escapulia por um canto do cenário, a caminho da terra de ninguém da sua invisibilidade. Além disso, os edifícios magníficos estavam vazios, como cabeças sem ideias.
Como era sábado e por estar em Tróia e não haver em Tróia muito para fazer, optei por comprar um qualquer jornal, porque vi ali em Tróia, um quiosque vistoso no meio do daquela triste solidão. Não sei o que me deu para perguntar, talvez estarem-se a acabar as notas de banco: há por aqui multibanco? «Não senhor», respondeu o sonolento empregado. «Aqui, não há nenhum». E banco, arrisquei? «Isso ainda menos», retorquiu, iluminando-me o espírito.
Naquele universo de nada, afinal, entre a beleza urbana e a quietude marítima, ainda sobrava o espaço do ainda menos, forma de estar perto de coisa nenhuma. Umas horas depois arroz de polvo e vinho branco ocupavam-se de mim, preenchendo a sensação de ausência.
Uma sesta repôs a crença e a fé, como num sonho. «Não faz mal, antigamente também não havia e éramos todos felizes. Menos se gasta!».

16.5.09

Apetite voraz

O jornal Expresso desta semana anuncia na revista Única um livro de Mafalda Pinto Leite chamado Cozinha para quem quer poupar. O tema, claro, é a crise. Segundo se relata ali, o livro tem mais de 450 receitas e «nenhuma ultrapassa os 5 euros». Até aí bem e bom. E barato. Só que na página direita vem uma receita intrigante. O poupado leitor julga-a uma generosidade do artigo, revelando, em antecipação, um dos dos segredos do livro. Só que a dúvida surge com os ingredientes: Dois blocos de massa folhada, farinha sem fermento, 2 chávenas de ervilhas congeladas quatro cebolas, duzentos gramas de crème fraiche e mais salsa picada e limão.E um ovo batido. E, eis, 800 gramas de salmão.
Custará isto tudo menos de cinco euros? Um requinte ao alcance de todas as bolsas? Talvez. Amanhã saio de casa com apetite voraz e uma nota de cinco. E convido amigalhaços para uma jantarada. É que, anuncia-se, dá para seis pessoas. Um festim!
Bom, o problema, porém, não é individual, meu, antes, social, nosso: é que se o salmão passa a comida de pobre, adeus chic, adeus gourmet, adeus exquisite cuisine.

6.5.09

166 anos de Boa-Hora

A Boa-Hora faz 166 anos e ainda paira a ameaça de o edifício ter como destino ser um hotel. Uma coisa é certa: o tribunal que conheceu o melhor e o pior da Justiça Penal vai ser armazenado na antiga Expo, ao Parque das Nações. Sob a aparência de modernidade das instalações, a velha tradição de mal instalar. Para evitar o pior e para que fique uma palavra de memória pelo nosso património cultural, organizou-se um movimento cívico. Juntei-me a ele. Nos dias 14 e 21 deste mês há iniciativas culturais para assinalar o adeus e organizar a esperança.
Pediram-me que escrevesse uma peça de teatro para ser representada na segunda noite. Sinto as pancadas de Molière como pauladas pelo atrevimento. Oxalá eu parta uma perna!

2.5.09

Uma tarde no Lidl

A menina da caixa registadora tinha um sorriso bonito e um nariz adunco. Descobri, pela conversa da senhora que me antecedia, que fazia anos. A senhora que me antecedia tinha uma mãe com uma saca profunda, onde se afundou uma carteira de onde não mais saía um cartão multi-banco, com que pagava as contas que me pareciam ser as da filha. Tinha cara de mau humor. Eu esperava paciente e ruminante. E a aniversariante menina sorria, esperando também, ela e o inevitável nariz adunco. Só a senhora e sua mãe alegadamente pagante pareciam não sorrir nem pagar. A fila ameaçava aumentar.
Entre nós, expectantes, um casal que conversara antes sobre coberturas de tábuas de passar a ferro, problematizava agora o irem amanhã almoçar a casa não fixei de quem. No meio disto, eu hesitava se as batatas não pesariam demais na minha coluna. Acabei por levá-las fritas enquanto o cartão não aparecia e todos com duas excepções sorriam amareladamente. Salgadas, fazem mal à saúde, mas não à coluna. De qualquer modo são fritas e amarelas, em azeite. Dão saúde ao que diz o rótulo. Estou verde. A fila dos sorridentes era agora engrossada por um fecho éclair entreaberto ao limite do prometedor e um corpo de passerelle encavalitado nuns saltos altos, olhando-nos panorâmicamente num sorriso em madeixas. Um súbito porra que a velha não desengoma tirou-nos o sorriso. Num instante um ar zangado, adunco, aniversariante, panorâmico, engomador, passou a ferro a mãe, a filha e a carteira. Ah! Afinal está aqui, eis a anciã com um ar prazenteiro, sacando uma tirinha de plástico completamente verde. Verde código verde. Nessa altura já tamborilava em chinela o salto alto da entreaberta. Mais uns segundos, pantera ansiosa, arriava a giga, pousando-as, magníficas, no chão, duas cestas carregadas de banalidades. Olhei para trás: era do companheiro da dos saltos altos, meão de altura, rufia de maneiras, carregado de possibilidades a voz da qual o porra saíra.
Eis o meu fim de tarde no Liddl: aqui a qualidade é barata. Ah! Quem quer sacos paga-os. Aceita-se pagamento com multi-banco.

1.5.09

Uma Feira do Livro

Hoje a Feira do Livro abre popularmente após o almoço e oficialmente à noite. Sendo 1º de Maio há um travo simbólico nesta dicotomia entre o oficial nocturno e o popular diurno. Gostaria de ir lá, ver os livros, reencontrar os que, ano após ano, continuam sem quem os queira, os que foram perdendo a graça, os que caíram em graça e a quem tudo se perdoa. Depois há escritores sentados a escreverem autógrafos, os passeantes que aproveitam o ensejo do desconto do livro do dia. Hoje, vivendo entre livros, poderia levantar os taipais da minha feira, expondo domesticamente a minha livraria. Entre o folhear displicente talvez encontrasse motivo para uma tarde. O dia escoa-se. Soube que havia Feira do Livro. Tínhamos chegado a Maio.