20.1.09

A Xica

Antigamente escreviam-se cartas que seguiam pela mala postal do próximo vapor. Quando era muito urgente telegrafava-se.
Antigamente os sentimentos cumpriam o horários dos paquetes, dos comboios, dos correios.
Antigamente a hora de chegada do carteiro era o momento mais ansiado, mais odiado do dia.
Antigamente o abrir de um envelope era o instante do aperto do coração.
Antigamente escrevia-se em papel de carta muito fino para cada missiva não pesar mais, às vezes aproveitando o verso e o reverso da ténue folhinha.
Antigamente os que não escreviam, aproveitavam um canto final do que estava livre para acrescentarem os beijinhos, os abraços, os xis, as recomendações de todos os que se associavam de modo breve ao acto de se ter escrito.
Antigamente algumas cartas traziam fotografias, sujeitas à curiosidade, outras notas de banco escondidas, com risco de extravio.
Antigamente havia cartas perfumadas, cartas tarjadas de negro, cartas comerciais com facturas e outros efeitos na praça.
Hoje temos a internet e com ela o estarmos instantaneamente a toda a hora e por toda a forma em todo o lado.
Quando a rede falha e estamos longe, sentimo-nos abandonados à nossa sorte. Nem um aerograma, ao menos, em correio aéreo, nós por cá todos bem, saudades à mamã, à Xica e aos meninos...

19.1.09

Haja Deus

Claro que há a pobreza e a desordem e o desnível social. Há sobretudo a ideia de que o ser humano aqui arrisca muito por tão pouco, todos os dias, porque cada dia é uma aventura. Mas há a tabuleta de letras em amarelo, um toque mais de cor berrante entre filas desordenadas de barracas, lugares de habitação, de comércio, de tantas formas pelas quais se sobrevive, sob o calor e o pó: «Cabeleireiro Deus É Pai!». Dentro fazem-se prodígios de ondulação, maravilhas em madeixas. No momento em que passei, vinha o requebro de franjinha. Ria-se ela e ria-se em redor a Natureza, com tudo o que de humano aqui nela se inclui.
Nunca o meu pouco cabelo se sentiu tão só.

17.1.09

Os telhados de zinco

Nasci em Malanje. Quando a guerra começou na Baixa do Cassanje eu estava em Malanje. Vivi a chegada dos primeiros caçadores especiais, as primeiras imagens das chacinas, o ambos os lados da violência. À noite as mangas a cairem, pesadas de tão maduras nos telhados de zinco, pareciam tiros de canhangulos. Depois arrancaram os olhos a um taberneiro perto, chacinaram a metralhadora pela noite na ponte do rio Cuanza. O meu pai comprou uma espingarda 22 Long e seiscentas balas. Um dia acordei abraçado a ela, transido de medo.
Lembro isto porque de link em link, que os amigos mandam, vi imagens.
Passou por cima de nós a asa do avião, numa tarde de sábado, como hoje, a improvisada pista do campo de aviação, o chão esburacado, o risco iminente, o carro do meu pai e tantos outros a ladearem a pista, os faróis em oblíquo, para iluminarem o local da aterragem. Era escuro já. Murmurava-se que o Nordatlas trazia armamento para o quartel. Este Nordatlas. Ainda hoje guardo na memória o roncar dos motores.

16.1.09

A lindinha

Ouvia distraído rádio quando ele, futebolista, falava. Acho que tinha vindo de África ou do Brasil, esse pormenor não retive, mas tinha aquele entusiasmo tropical e, pelos vistos, aquela habilidade natural para dar pontapés e correr atrás de um bola que fazia dele e tantos iguais heróis de culto e figuras de luxo, pagos a ouro.
Vim aqui escrever porque, ao tentar dizer, numa frase só qual o seu grande objectivo em campo, aquela missão que dava a todos os seus músculos um fito e lhe povoava a cabeça de ideias tácticas fazendo de cada corrrida um propósito, de cada finta um instrumento, de cada remate uma apotesose, explicava que a ideia era «meter a lindinha lá dentro».
Rejubilei! Revi-me em êxtase, o estádio da vida em pé, eu, glorioso, olímpico, sumamente viril, a lindinha lá dentro.

14.1.09

O coveiro e o covil

Não resisto!
Chegou por várias fontes.
Circulará já na Net.
Mas aqui vai!
No aviso nº 11 466/2008 (2ª Série), declara-se aberto concurso no I.P.J. para um cargo de assessor, cujo vencimento anda à roda de 3500 euros. Na alínea 7 do dito aviso consigna-se que o método de selecção a utilizar é o concurso de prova pública que consiste na apreciação e discussão do currículo profissional do candidato.
Pois bem.
No aviso da pág. 26922, oriundo da Câmara Municipal de Lisboa anuncia-se concurso externo de ingresso para coveiro, cujo vencimento anda à roda de 450 euros mensais.
Ora o método de selecção neste caso é outro.
Primeiro, prova de conhecimentos globais de natureza teórica e escrita com a duração de 90 minutos. A prova consiste no seguinte:1. - Direitos e Deveres da Função Pública e Deontologia Profissional;2. - Regime de Férias, Faltas e Licenças;3. - Estatuto Disciplinar dos Funcionários Públicos. Depois vem a prova de conhecimentos técnicos: Inumações, cremações, exumações, trasladações, ossários, jazigos, columbários ou cendrários. Além disso, claro, conhecimentos de transporte e remoção de restos mortais.
No final, exame médico para aferimento das capacidades físicas e psíquicas do candidato, não vá, claro, os mortos candidatarem-se.
Bem se ria o falecido Fernando Luso Soares num dos seus livros o Vontade de Ser Ministro, quando fantasiava, no quadro do antigo regime, com a história de um candidato a cargo por perbenda das senhoras autoridades e figuras gradas, que, ansioso por ser ministro, se viu convencido de que o lugar de inspector dos cemitérios era, na outra senhora, um dos lugares de maior importância política, sabido que os empedernidos e pertinazes reviralhiastas não perdiam pitada para armar motim no Alto de São João com discursatas republicanas, nos Prazeres com efemérides democráticas e por onde calhavam a pretexto de sepulcro lançar a simbólica de ornamentações amaçonadas e aventaleiras, que isto a pedreiragem, ademais jacobina e anti-talassa, tem artes de dianho.

12.1.09

O monumento à desumanidade

Há uma estação ferroviária que se chama Gare de Oriente. É um local inamistoso, em que um imenso pé direito simboliza a opressão de um céu de cimento, onde os grandes átrios são desertos gélidos para solitários viandantes. Acantonadas nos esconsos, como se escondidas de gente, bichos na floresta de betão, umas lojecas tristes, vendem sensaborias, algumas tragáveis como refeições.
Quem desenhou aquilo odiava comboios, tinha repugnância por viagens, rancor de todos os que são passageiros. Arquitecto da desolação fez ali o monumento à desumanidade.
Há a oriente de Lisboa e a Sul de Chelas um sarcófago por cima do qual passam comboios, nas tripas do qual passa o metropolitano, onde nos labirintos intermédios se atulham automóveis e nos entrefolhos urinados do qual estive eu e outros ensonados para a composição das sete e nove.
Na plataforma fazia frio. Quando não faz frio faz vento. Vindo de Auschwitz, os vagões entraram no horário, a caminho dos fornos crematórios das vidas queimadas a trabalhar. Alguns na ilusão da primeira classe.

7.1.09

Risco coberto

O meu pai costumava dizer que havia duas coisas de que não tencionava morrer, uma de susto, outra de parto.
Eu, naquela fase em que a virilidade se afirmava e com ela o gosto de exibir audácia, adorava repetir a graça. Depois foi ficando a piadinha, mesmo quando a masculinidade não precisava de demonstrações verbais.
Estava tudo muito certo até ter atentado no que me trouxe hoje o correio. Uma companhia de seguros, que cobre o meu futuro cadáver e a quem pago para gozo daqueles a quem o meu ser cadaveroso aproveite, explica-me, numa cartinha assinada por dois administradores que, entre outras coisas, me garante por apólice ressarcir do risco de parto. Isso mesmo.
Fico-me pois pelo susto. Ou melhor, já não fico.
De ora em diante vou precaver-me a sério, porque pior do que um parto de alto risco ainda é uma gravidez indesejada. E essa não sei se a seguradora, na hora do néné, não se tenta escapulir, entre as letras miudinhas, escrita a corpo oito.
Ele há coisas que nos seguram sem que um cristão saiba por onde!