31.12.07

Fogo!

Daqui a pouco, quando a pirotecnia inundar de fogo os ares feéricos, entra em vigor a proibição de fumar. Há um provérbio que diz que não há fumo sem fogo. Urge acrescentar: mas há fogo sem fumo.

O novo senhor da Justiça

Ao terminar o ano civil, o ministro da Justiça tem razões para estar contente, cercado de pessoas que parecia não conseguir tornar felizes.
À partida, muitos pensaram que o seu passado iria liquidar-lhe o futuro. Não sabiam, ingénuos, o que é a política.
No meio do percurso, muitos pensaram que o primeiro-ministro se iria desembaraçar dele, remodelando-o. Ignoravam até que ponto, a teimosia vence, e José Sócrates é, no filme complexo da governação, o chamativo trailer da propaganda, reiterativo, simplificador, vocativo.
Por pouco tempo aliás, muitos imaginaram que o então ministro da Administração Interna, António Costa, o iria colonizar: está edil, numa Câmara falida, fora da órbita governamental.
Alberto Bernardes Costa continua, de pedra e cal.
O Governo decretou, como política oficial, o combate às corporações e seus privilégios.
O ano termina, com o Bastonário cessante a elogiar-lhe os códigos, as leis a sucederem-se em catadupa, nenhuma até agora revogada.
Claro que há os vociferantes críticos. Mas nenhum conseguiu, até agora, que a política se alterasse, apenas que o discurso amaciasse, o ar carrancudo substituído por um esgar condescendente. Lamentavelmente, ou estão anémicos, ou deprimidos ou comprometidos.
O toque final do sucesso da política do Governo na área da Justiça, deu-o a entrevista de Pinto Monteiro ao Correio da Manhã. Finalmente uma entrevista de Procurador-Geral, sem ruídos esquisitos no telefone.
O jornal, que agora se transformou num diário de referência e o mais lido no país, que os ditos intelectuais gostam de ler mas não de mostrar, eleva-o a a homem do ano.
A partir desta entrevista histórica, uma coisa fica clara: o PGR é quem responde pelo sucesso ou insucesso do combate ao crime, pela segurança da cidadania, em suma, pela justiça dos tribunais. Sobre tudo isso, não mais se irá mais questionar o ministro que da Justiça usa o nome. O contrário é o que vai suceder. Pinto Monteiro põe-se a jeito com uma frase: «o poder político pode e deve inquirir o procurador sobre a Justiça».
Emfim, em termos de justiça, os jornais primeiro, os eleitores a seguir, que telefonem a Pinto Monteiro. Ele já disse, nessa entrevista, que «o que dá prestígio ao Ministério Público é a opinião do pedreiro, do médico, do taxista». Nem imagina quanto isso agrada aos políticos, por falar em pedreiros, quando chegar a hora da pedrada, a intifada popular sobre alguma justiça que há.

30.12.07

A privada

«O Banco de Portugal era uma instituição privada, que obedecia ao Governo». Assim sucedeu no tempo em que Alves dos Reis praticou a sua burla. Di-lo Francisco Teixeira da Mota na página 45 da sua notável biografia desta extraordinária personagem, que estou a ler, pois o autor amavelmente pediu-me que lhe apresentasse a obra.
Hoje, a dar crédito ao que por aí se diz, o Banco de Portugal não é uma instituição privada.

27.12.07

O banco

Estar num banco de Hospital e ver entrar a vida e a morte, agarrados a uma maca, as bocas encovadas por desdentação, ali já num murmúrio de respiração, além no sufoco esganado que os olhos traduzem num grito silencioso de acudam.
Estar num banco de hospital feito consultório de ocasião pelos que se tentam evadir da fila dos condenados do que se chamam, com amável eufesmismo, as listas de espera.
Estar num banco de hospital e ouvir pedir comida e ouvir dizer que ja não há comida.
Estar num banco de hospital, entre os que gritam e os que já nem sabem gritar, no meio, o passarinhar errático do pessoal de bata branca, de bata azul, de bata que já nem tem cor.
Estar num banco de hospital pela noite dentro e à chamada de «médico aos directos», acorrer, como se em passeio público, a medicina rotineira ao encontro do trivial morrer-se, no meio a probabilidade de ainda se cruzarem a tempo.
Estar num banco de hospital, onde se nasce, onde se morre, onde se sente o que é viver por enquanto.

25.12.07

As frases aladas

«O que queres que eu te ofereça, tu que nunca queres nada?», perguntou-me ela, desejosa de se livrar do acto de dar. Nenhum outro como quem é nosso para não saber o que queremos, como se julgasse termos já tudo. «Dá-me o Lobo Antunes», respondi-lhe, depois de remoer, como se me faltasse tanta coisa, na imensidão de ter tão pouco. «Qual deles?», inquirou ela, na sua juventude cultivada, querendo falar dos muitos livros do António, nem se lembrando que existe, pelo menos, o João, também médico, também escritor. «Qualquer um, tanto faz!», respondi-lhe, talvez por ser Natal e eu querer, enfim, reconciliar-me com uma escrita que, sem saber porquê, tenho desprezado, por não gostar, quase sem o conhecer, da pessoa do seu escritor.
A noite passada comecei a ler, amigável, mas desconfiado. Teimei em seguir no pequeno livro, todas as linhas, quase soletrando cada uma das suas muitas palavras, rendendo-me, reconheço, ao modo tumultuoso de fazer sentir, admirando, é verdade, aquele torrencial desfilar de frases aladas , vibrando, enfim, com o estilo, mesmo quando errático, perdoando-me pelo mal que pensei e absolvendo-me do que venha a pensar.
Foi então que, depois de lidos chorrilhos infindos de palavrões, surgiu o «quando é que eu me fodi?, perguntou-se o psiquiatra». Parei aí, lembrando-me do pobre do Vergílio Ferreira, que deixou no seu diário que aquilo era uma escrita de «caralhices» de um homem «com entradas de Lobo e saídas de Antunes», e eu ainda na fase lupina dessa prosa hoje aureolada.
Ia na página 26 da edição da «Memória de Elefante», texto que uma «comissão» consagrou como sendo a «ne varietur», imortalizando a obra na sua fixidez tipográfica, fora ela o mausoléu de si própria, enfim morta!
Mas não desisto e hei-de lê-lo todo! Hoje não, porque é Natal e o Menino Jesus, coitadinho, é inocente e tem a vida toda para aprender com os romanos impropérios e com os filisteus outras obscenidades. Terminará na cruz, sem se perguntar como se perguntou o psiquiatra. Mas hoje, ele é pequenino e dorme aqui a meu lado, desde a minha infância, entre palhinhas, a vaca, o burro e uns pais que foram-no, afinal, sem o terem sido sequer, tão misteriosamente quanto a pomba, que seria ele não o sendo, todos o mesmo, todos divinos, um deles humano.

23.12.07

Os deserdados da rua

Escrevendo sobre a sua família, os de Médicis e falando de Ana Luísa, eleitora palatina, que faleceu em Fevereiro de 1743, Lorenzo, homónimo do «Magnífico», lembra a ingratidão de Florença em relação aos seus, que a eles tanto deve pelo mecenato e pela generosidade sem os quais ela mais não seria do que uma cidade como a de uma província qualquer: «a Ana Luísa não foi dedicada qualquer rua ou praça e nenhuma estátua recorda ao passante o que a cidade deve a esta mulher».
Última da estirpe, esta estupenda criatura legou uma colossal fortuna, tal como os seus antecessores haviam patrocinado os grandes vultos do Renascimento, confundindo-se com ele.
Mas é no momento em que, neste livro singelo, leitura de domingo, se refere como o monge Savonarola, em nome da teocracia, que fazia dele o enviado da Salvação, e enlouquecido por uma moral rígida que diabolizava o hedonismo, a fruição e o prazer, se apossou do poder, com o apoio da rua, de cujos deserdados se fez voz, em 1494, para ser queimado vivo, logo cinco anos depois, pela mesma turba que o glorificara como se ao Messias, na Praça da Senhoria, que se entende o que é o ilusório poder e a vã crença na fidelidade humana.

12.12.07

Compulsivo maledicente

Houve um leitor que, com amabilidade, me deu conta de se ter chocado, ao ver-me usar a expressão «compulsivo maledicente» a propósito do escritor Jorge de Sena.
Revi o que escrevi e peso agora o que disse. Terei sido impensado e por isso injusto?
Jorge de Sena foi uma escritor com valor, na prosa, na poesia. Não conheço toda a sua obra, mas o que li causou-me viva impressão, pela força motora das palavras, pela forma de escrever. Em nada o diminuo, a obra só por si aumenta o homem.
Quando vi na Cinemateca o filme que Joana Pontes realizou sobre a sua pessoa, já eu estava hesitante. É que há aspectos na sua escrita e vida que me ofenderam a sensibilidade.
Primeiro, a introdução que escreveu à poesia de António Gedeão, em que, sei lá se contagiado por serem ambos homens de ciência, se entreteve a contar na obra apresentada versos e palavras, chegando à média de dezasseis versos por poema, cálculo feito a partir de uma fracção que começa com 5px8 v+4 px12 v+5 px 16... e assim sucessivamente, praticamente assassinando o que há de beleza profunda e singela na poética do autor da Pedra Filosofal.
Gedeão, que fora, enquanto Rómulo Vasco da Gama Carvalho, professor de Sena no Liceu de Camões enviara-lhe aliás em 1956, de modo anónimo, o seu livro de estreia «Movimento Perpétuo», ansioso por um comentário. Tornara-se-iam amigos.
Depois, há a ensombrar a meus olhos a imagem de Sena, o ter-se permitido, ao escrever em 1959, um ensaio sobre a poesia portuguesa, tirado em livro pela Ática - que aliás citei aqui - ter começado com um «devo dizer, para começar, que não sou grande leitor de poesia, naquele sentido em que o são quantos devoram os produtos poéticos (...)», o que ainda se tolera, para logo rematar com «o tempo não me sobra para viver recluso na poesia dos outros». Não consigo desligar este modo de dizer de uma certa soberba intelectual, que relativiza, pela forma de analisar, o valor da análise.
Finalmente, foram os «Diários», editados por Mécia de Sena e impressos pela Caixotim em 2004, onde, atónito o vejo, aos trinta e quatro anos, a recusar assinar uma petição contra a Censura para não prejudicar um convite do Governo para ir à Índia, em missão oficial, viagem de que acabou por não beneficiar e logo a seguir a acrescentar coisas deste teor: «Telefonou o Saraiva a contar que esteve preso desde domingo até ontem. Fora com mais 50 pessoas ao aeroporto fazer recepção à Maria Lamas. Foi tudo engavetado em Caxias, de onde ele saiu, mas onde ainda muitos ficaram. Claro que o nosso Silas está lá. E também, o Keil e Maria Keil, e O'Neill, o Cortesão Casimiro, etc., etc. Em todo o caso creio que, se os não tivessem prendido - o que é uma coisa ridícula - teriam ficado desconsoladíssimos, pelo menos alguns como o Silas».
Ao ler isto, caiu-me em cacos o mito do anti-fascista sem mácula e o humano, demasiado humano, ocupou, desolador, o seu lugar.
Espantará assim que, falando do António Alvim, Sena diga que «do Leonardo, este herdou a desvergonha, como o Álvaro Ribeiro, a velharia teocrática. O Marinho é que herdou a retórica provinciana»?
E não será lógico que fale dos «Cidades, Nemésios, Prados Coelhos e Kins, como «cães falhados mesmo como cães»?
E coerente quando vitupera contra «O Avante inundíssimo» e junte provocatoriamente, referindo-se aos comunistas presos que: «é pena que as pessoas não mereçam as perseguições que as dignificam»?
Digo mais, ou ainda passo por ser eu o compulsivo maledicente?
Obrigado, meu leitor. Vamos concluir os dois, tal como o Fernando Pessoa que nunca nos iludimos, porque felizmente nunca cegámos!

4.12.07

Ademanes solipsistas

Hoje há um blog que aproveita para desancar na Maria Filomena Mónica e num livro que ela terá escrito sobre o Cesário Verde. Na sua linguagem acerada acusa-a de «caprichismo burguês» e «ademanes solipsistas». Sobre o Cesário em si diz que o pobre teve uma «curta vida, aliás, pouco entusiasmante», «inexcitante», e que ela se apaixonou pelos seus versos como uma «previsível adolescente».
Já Jorge de Sena, um compulsivo maledicente, em 1951 havia escrito, num estudo dedicado à poesia portuguesa, editado pela defunta Arcádia que, o poeta era expoente do «romantismo de capelista».
O facto de Fernando Pessoa ter escrito no Livro do Desassossego que «vivo numa época anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele», não conta.
«Escarnecido em vida», Verde ficou amarrado ao facto de ter sido filho do dono de uma loja de ferragens.
Hoje lá está na rua número 7 do Cemitério dos Prazeres, com a naturalidade de quem de todo o natural fazia versos, que em vida nunca viu aliás publicados, um camponês perdido numa Lisboa de gente que fala de livros dizendo ufanamente «que não tenciono ler».